TAIZÉ

Peregrinação de Confiança num mundo de silêncio e de escuridão

Igor: um pequeno rapaz, que é surdo e cego

 

Mesmo que seja por alguns momentos, viver em silêncio, na solidão e no escuro, é insuportável. Desorientados e assustados, procuramos imediatamente o contacto com outras pessoas.

Uma vida de completo isolamento na escuridão e no silêncio parece ser impossível. A maioria de nós consegue ver e ouvir bem os outros desde que nasceu. Orientamo-nos de acordo com a forma como os outros reagem e é graças à sua ajuda que entramos no sistema social de que dependemos. Isto é inteiramente normal.

Igor tem 5 anos. É cego e surdo. Até agora, o seu mundo fechava-se à volta de três quartos e duas pessoas: a sua mãe e o seu irmão mais novo. O caso passa-se em Alagoinhas, no Brasil. Para Igor, nada é normal. Comer alguma coisa diferente de papas de aveia não é de todo normal para Igor. Haverá alguma coisa que saiba melhor do que papas de aveia? Alguma coisa que se possa comer sem mastigar? Salgados? Carne? Mas o que significa carne para Igor? Para ele não é normal alimentar-se sozinho. É muito mais fácil comer com a ajuda de alguém. E o que é uma faca, um garfo e uma colher? Por que razão precisam disso? Por que existem mesas? Tudo isto é estranho a Igor.

Igor não brinca com outras crianças na rua. Ele não sabe que existem outras crianças, nem que ele pode brincar com elas. Nem sabe que vive numa casa, tal como as outras crianças da vizinhança; que ele pode sair para a rua; e na rua é preciso ter cuidado com os carros. O que são carros?

Igor não se pode orientar. No seu mundo, não há hoje ou amanhã; também não há dia e noite, nem conhecimento nem vontade. Não há comunicação.

A única coisa que é certa para Igor é o amor e a atenção da mãe, que tenta desesperadamente ajudar o seu filho. Os médicos que consultou não foram capazes de fazer nada por eles e mandaram embora mãe e filho sem terem feito nada. Ter um filho como Igor já é suficientemente duro, mas torna-se ainda pior quando os médicos dizem: «A única coisa que pode fazer é levá-lo para casa e deixá-lo tal como está. Não podemos fazer nada por ele». Quando a mãe de Igor estava prestes a desistir e a resignar-se com o facto de nunca vir a ser capaz de comunicar com o filho nem de educá-lo, duas professoras alemãs, especialistas no trabalho com surdos, chegaram à comunidade de Taizé em Alagoinhas. Tinham ouvido falar de Igor e tinham decidido ajudá-lo, em colaboração com a sua professora na escola orientada pelos irmãos de Taizé. Baseadas no seu conhecimento do «método Van Dyke» – ensino especializado para surdos e cegos –, começaram a trabalhar com Igor. Através de jogos elementares, simples movimentos corporais comunicados a Igor através do toque, tentaram levar Igor a imitá-los e a exprimir os seus desejos. Ele tinha de perceber que uma pessoa pode exprimir os seus desejos e que os outros que estão ao pé podem reagir. Esta é a base da comunicação.

O exercício de que Igor mais gostou – e queria sempre fazê-lo em primeiro lugar – era baloiçar. Quando queria baloiçar, enrolava os braços e as pernas em torno da pessoa que estava com ele e abanava a cabeça de um lado para o outro. Este foi o primeiro sucesso!

Contudo as duas professoras encontraram muitas outras dificuldades, muito maiores do que estas, relacionadas com a vida quotidiana. Esta é uma ilustração destas dificuldades, retirada do diário de uma das professoras: «Hoje fiquei sozinha com o Igor. Cumprimentei-o e deixei-o tocar na minha pulseira, o que permitiu que ele me identificasse. Logo a seguir pediu-me para baloiçar. Ao fim de alguns minutos ainda não estava satisfeito. Recusava tudo e deixou-se deslizar para o chão. Eu não sabia o que ele queria. Levei-o a beber água, mas ele não quis. A mãe dele também estava lá e pensou que ele pudesse ter fome. Pus-lhe uma tigela na mão mas ele recusou e continuou a mostrar o seu descontentamento. Isto aconteceu até que eu lhe trouxe um iogurte. Então ele lá concordou em sentar-se ao meu colo. Mas, uma vez que o iogurte não estava a chegar à sua boca com suficiente rapidez, voltou a saltar muito irritado. Segurei-o nos meus braços durante um momento. Ele acalmou-se, continuou sentado e bebeu o iogurte rapidamente. Ficou contente e fomos brincar. Quando nos sentámos, toquei-lhe nas mãos e ele riu-se.»

Foi durante este período difícil, em Maio, que dois especialistas de São Paulo, que trabalham com pessoas surdas e cegas, contactaram com os irmãos. Foi como um sinal dos céus. Ofereceram-se para usar a sua experiência para abrirem um caminho para Igor. Estas duas pessoas, alegres e conhecedoras, trabalham neste campo há 20 anos. Ofereceram-se para partilhar a sua experiência com as professoras do Igor, durante uma semana. Insistiram muito na necessidade de haver na escola, para o Igor, um horário claramente definido e que essa organização bem estruturada era essencial.

A seguir à semana de preparação, as professoras do Igor começaram novamente a ensiná-lo com mais convicção e optimismo. Ensinaram-no a dormir à noite, a tomar as suas refeições a horas regulares, a comer alimentos sólidos, a subir e a descer escadas, a pedir o que queria... Foi também importante para a mãe estar mais envolvida na sua educação. Por isso, durante as semanas seguintes, ela acompanhou o Igor à escola e ficou com ele todo o dia, a observar o trabalho que as professoras estavam a fazer com o seu filho.

O dia de Igor começa de manhã com o pequeno-almoço na escola. A seguir lava os dentes. Depois tem de completar várias etapas antes de poder baloiçar ou descansar um pouco. Há um tempo para jogos, onde ele tem de reconhecer várias formas geométricas e juntar peças do mesmo tamanho. A manhã acaba com um exercício de comunicação através de movimentos recíprocos. Em cada etapa, Igor tem um objecto que serve de ponto de referência para indicar que actividade vem a seguir. Por exemplo, antes de cada pequeno-almoço é-lhe dado um copo para ele tocar. Desta forma, o horário pode ser explicado a Igor. Estas são as primeiras orientações que lhe podem ser dadas. Ao mesmo tempo, isto permite que ele se familiarize com o uso de símbolos.

Depois de um mês, aos poucos mas significativamente, mãe e filho tinham ambos feito grandes progressos. Igor tinha-se tornado muito menos agitado. Tinha começado a mostrar interesse pelo que estava à sua volta e por usar as mãos para identificar objectos. Da maneira mais natural possível, agarrando a mão da professora, tinha começado a andar. Do mesmo modo, tinha conseguido comer alimentos sólidos, o que originou uma grande explosão de alegria em todo o refeitório da escola. Quanto à mãe, a expressão triste da sua face desapareceu. Pelo contrário, agora ela ri muito e fala alegremente sobre os progressos de Igor.

O encontro com estes dois especialistas teve outras consequências. Ficou decidido que o primeiro congresso sobre educação de cegos e surdos seria realizado em meados de Agosto em Alagoinhas, no Nordeste do Brasil. Isto tornou-se realidade quatro meses depois. Depois de muitas semanas de preparação, a 14 de Agosto houve um encontro com pessoas interessadas de todo o Brasil, em conjunto com muitas outras da Colômbia, Alemanha, França e Portugal. Todos vieram para discutir a vida de pessoas cegas e surdas. Nos dias 15 e 16 houve workshops. Participaram mais de 300 pessoas; entre elas, professores de turmas especializadas para crianças deficientes de diferentes escolas do Estado da Bahia, assistentes sociais, pessoas que trabalham na administração e envolvidas em iniciativas simples da Igreja.

Todos se juntaram por causa de uma criança; por causa de Igor, que é surdo e cego. Seis meses antes, ele vivia no seu próprio mundo. Não sabia que fazia parte de um mundo em que havia outras crianças... Um dia ele irá provavelmente descobrir a beleza de acreditar no inesperado...

Last updated: 10 August 2004